O casamento
- Saulo Marzochi
- 17 de ago. de 2017
- 2 min de leitura
O casamento já passou por inúmeras transformações em menos de quinhentos anos desde as caravelas, quando a infante Carlota Joaquina foi arranjada a D. João Sexto, com seus tímidos 11 anos de idade. Ainda hoje, meninas muçulmanas de oito anos são vendidas como esposas no Iêmen e morrem de hemorragia uterina na noite de núpcias. Casamentos arranjados evoluíram para os de conveniência, com ou sem amor, que evoluíram para a possibilidade do desquite. As desquitadas eram então mal vistas na sociedade, até outro dia. Leis foram apagadas, como a defesa da honra e o próprio adultério. Na visão contemporânea, a traição feminina já é encarada como um lapso de franqueza, de verdade e desejo, como na discussão sobre a “alma imoral” de Nilton, Nilton Bonder. Já o homem quando trai, é a velha safadeza e canalhice de sempre - mais do que esperada. Como dizem, para trair, tem de ser 007, como James, James Bond. Tem gente que diz: “lavou tá novo”, eu lá tenho minhas dúvidas, pois conheço um cara que teve que passar removedor faísca para tirar o cheiro da vizinha de seu bigode, mas isso é uma outra história, a da hipocrisia que finge não conhecer a liberdade.
Durante décadas, se depositou na possibilidade do desquite a resolução de todas as angustias matrimoniais, já que ainda era raro em boa parte do planeta. Comum a certas culturas e incomuns a outras, pra se ter uma ideia, só em 2003 o governo chileno criou a possibilidade do divórcio. O desquite parecia ser a solução ideal para tudo, como se o rompimento das relações fosse sempre muito melhor do que o exercício da tolerância e do convívio, justamente em tempos de impaciência. Hoje, em oposição, existe um movimento contrário, não de uma retomada reacionária a manutenção de casamentos infelizes em nome da fé religiosa, mas enquanto tomada de consciência sobre a questão da insatisfação humana e repetição involuntária dos mesmos tipos de relacionamentos arquetípicos - o autoconvencimento de que no fundo somos insaciáveis e que sempre existirão problemas de convívio.
No judaísmo, quem se separa faz uma festa, uma mitzvá do divórcio, contanto que o casal não volte atrás e reate o casamento, certamente para não fazer os convidados, familiares e amigos de bobos. Mas a manutenção de um relacionamento não pode ser motivo de acomodação daqueles que tem preguiça de contar toda sua história de novo para outra, ou outro, ou que provavelmente terão de elaborar uma nova lista de favoritos no Netflix. Não se pode descontar ou projetar o sentimento generalizado de frustração global sobre os casais, o que é muito comum. Arriscaria afirmar que está relacionado à conectividade atual, que traz a ilusão de que tudo é possível e que estamos de fora, ou perdendo alguma coisa e que, em ultima instância, não aproveitamos a vida: porque não temos um wingsuit, não fazemos parkour, não descemos ondas gigantes, nem conseguimos fazer posição de yoga sobre uma prancha de standup, o que é a coisa mais ridícula desse mundo. Temos acesso aparentemente a tudo, quando na verdade não temos, temos a ilusão de estar informados, quando na realidade não estamos, e constantemente achamos que as vidas e os relacionamentos dos outros são melhores e menos sombrios que os nossos.
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