Quando sonhamos acordados
- Saulo Marzochi
- 8 de dez. de 2017
- 2 min de leitura

Antes de entrar no carro à noite, confiro o banco de trás para ver se está livre de serial killer. Ao dormir, não dou o mole de deixar um pé descoberto no lençol, para que uma alma penada, moradora da treva abaixo da cama, não o agarre. Tenho medo de subir no sótão sem lanterna, ou descer no porão e encontrar uma criatura negligenciada. Um irmão que não conheço, um ladrão escondido. Medo do mofo, da poeira, da teia da aranha. Medo de escultura de namoradeira. Medo de nadar muito tempo no mar ou na piscina e topar com iara, arraia, cobra, lula gigante ou tubarão. Tenho medo de pisar na macumba, nos ladrilhos escuros do mosaico e na faixa amarela da escada rolante. Tenho medo de não cruzar os dedos ao escutar a sirene da ambulância e matar o paciente. Medo de Zé Pilinto, de encarar de madrugada um travesti ou um mendigo. De ficar louco conversando com loucos. E cantarolo canções infantis ao procurar algo no escuro, pois que as músicas de criança iluminam os demônios. Aqueles seres que eu mesmo inventei, ou que eram inventados pelas minhas irmãs, pelas babás e empregadas. Medo de ir pra Febem, medo de minha família ser uma cópia extraterrestre da real que foi sequestrada. Medo de lendas urbanas, como os discos da Xuxa rodados ao contrário. Do punhal escondido dentro do boneco do Fofão. Medos gostosos de criança, de quando imaginava monstros nas imagens da penumbra que se projetavam à noite no teto de meu quarto, dos carros que passavam de madrugada, às vezes riscando o asfalto molhado, voltando da balada, muito provavelmente vindos da boate Mikonos II, que ficava no antigo Hotel Nacional.
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