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O tempo da criança

  • Foto do escritor: Saulo Marzochi
    Saulo Marzochi
  • 5 de mar. de 2018
  • 3 min de leitura

Quando era criança não me preocupava com a passagem do tempo, pois ele estava ali, imutável e indestrutível, diante de meus olhos e de meu corpo, presente e sólido a cada dia. No entanto, os dias foram levando os anos, a configuração da casa, dos quartos, das prioridades, da fisionomia de meus amigos e familiares. Aquela realidade se transformou em lembrança embaçada, cuja nitidez se reconstrói com a ajuda da imaginação. Aquele passado que era presente e estava sempre ali, se perdeu numa enxurrada de dias. E que sorte ainda ter meus pais, e poder segurar ainda suas mãos, tal como quando eu era criança.

O tempo da criança é muito diferente do tempo do adulto. Cada fato que acontece na infância, vira logo uma mitologia, e é marcado pelo onicidade da descoberta de tudo aquilo que nos parece óbvio, como também daquilo que soava original. As coisas dadas, que vieram antes, eram como se fossem eternas. Uma irmã mais velha era infinitamente mais velha. E meus pais, tão sólidos quanto a pedra da gávea, são como uma casa, um lar, um castelo, como se sempre tivessem existido, e como se para sempre fossem existir. E a criança aprende de supetão as palavras, os nomes das coisas, as pronuncias, e sem a menor lógica, que existem números e dias da semana, e que alguns deles podem ser místicos ou mágicos, como as notas musicais, as vidas do gato, e as cores do arco-íris. Que os dias da semana, são dias de feira, onde se vendem frutas e peixes, com exceção do sábado e domingo, mesmo que no fim de semana também tenha feira. Que existem partes do corpo humano que costumasse esconder.

A criança então experimenta com a mão, com a boca, até se machucar, descobrindo o que é corte, o que é queimadura, o que é comer gelo, sangue, carne crua, açúcar puro, pedaços de carvão, e arrancar dente de leite dando chute na porta, com o dente atado a maçaneta por um fio dental.

A infância não é só fofa, é punk, é fedida, é catarro verde escorrendo do nariz de seus coleguinhas de turma. É encostar em chiclete endurecido, ou meleca, debaixo da carteira. É dor de crescimento. É o mate quente e sem gosto da garrafa térmica que é servido as crianças como se não fossem perceber. É Nescau batizado com água e açúcar, como se um dia, jamais pudéssemos lembrar. Era a fumaça intoxicante daquele aparelho que tinha na matinê da boate mikonos, acompanhado da cocacola quente.Também tive uma infância assassina, de matar formigas com a lupa, e sentir o cheiro do mercúrio cromo no joelho ralado, e sentir o gosto que tinha os machucados. Infância também é drama, é tédio, sensação de impotência ou solidão. Não saber como ir nem como chegar, e não poder ir sozinho. Falta de autonomia, de história e de passado. Não há o que lembrar, enquanto os segundo são flechas que deveriam machucar até os adultos, para que percebam que o tempo não é tão vulgar.

Não sei por que, às vezes sonho que estou em 2001. Se para Zuenir Ventura, 1968 foi o ano que não acabou, para mim, foi o ano de 2001. Em 2001 vi o filme 2001 no cinema, com som remasterizado. As primeiras namoradas, as primeiras drogas, as primeiras boas ondas, os primeiros amigos de farra, as primeiras noitadas e shows de havy metal... Porque naquele ano, ate que em fim, podia tirar carteira pra pegar a estrada, ou quem sabe, só pra entrar na boate. Foi o ano que fiz vestibular e que escolhi a “profissão”. Época em que escutávamos os mesmos discos, e ainda não nos fixávamos a tela do celular como zumbis.

Os dias custavam a passar em 2001, e de repente, bum, com direito a atentado e reunião às pressas no colégio, com o diretor alertando os alunos de que havia começado a terceira grande guerra mundial. E desde então, o ano de 2001 não terminou. Lembro de meus velhos amigos quando eram novos. De festas de arromba na casa do Joaquim. Do amarelo peculiar que o sol brilhou naquele ano tão quente e tão intenso, e de todas as esperanças que estavam depositadas no Lula...

Então me deparo no espelho comigo adulto, sem reconhecer o fio de barba branco deste homem estranho que agora assobia sem vegonha em público, como assobia meu pai e assobiava meu avô. Eu que tinha vergonha dos assobios de meu pai na rua, hoje assobio até tico-tico-no-fubá em qualquer lugar.


 
 
 

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