A pizza
- Saulo Marzochi
- 30 de nov. de 2018
- 3 min de leitura
Se perguntarmos para qualquer pessoa como elas percebem o mundo, certamente responderão que é através dos sentidos mais básicos, como a visão e a audição. Mas o que absorvemos através destes sentidos, em ultima análise, nada tem a nos dizer. Só é possível constatar o mundo ao nosso redor através de nossas experiências anteriores, construídas culturalmente, ou pessoalmente. Se fosse assim, um cego, ou um surdo, não poderia ser testemunha deste mundo, e de nada valeria sua interpretação. Só enxergamos aquilo que estamos aptos a ver. Quando estou bem vestido na frente de um cavalo, de nada vale minha indumentária, a não ser que esteja segurando um pote de ração. O mundo só pode ser percebido por nós mediante nossas experiências anteriores.
Quando era mais jovem não percebia o esforço e o sofrimento alheio. A vida fácil me imputava uma condição de constante cegueira. Costumava xingar os atendentes de telemarketing que ofereciam seus serviços, já que estava blindado pela distancia e pelo aparelho telefônico, desmerecendo o esforço de criaturas que se desdobravam a cada dia para sustentar-se da forma mais humilhante, certamente por falta de opção. Achava que meu tempo era precioso demais para ser desperdiçando. Que eu era mais culto e mais importante do que os outros. Que meus anseios eram mais pertinentes. Que minha subjetividade, ricamente construída por uma vida burguesa, recheada de livros de arte, boa comida e boa música, era mais interessante do que a subjetividade e as opiniões dos outros. Pensava assim devido a uma vida de facilidades que já encarava como tão difícil, como se meu fardo já fosse grande o bastante. Ao encarar meus primeiros fracassos, mesmo sendo pedante e inconveniente, me vitimizava, como se houvesse um conluio astral para me prejudicar. Pobre de mim! Que não era reconhecido, nem desejado, nem admirado, sem perceber minhas próprias arrogâncias e indelicadezas.
Comecei a perceber que os meus amigos e parentes que aparentemente alcançaram certo sucesso, ainda no inicio da carreira, também passavam por cima dos outros como tratores. E por incrível que pareça, muitos de nós aplaudem posturas como essa. Gente que se leva a sério e que não tem tempo a perder, como se ser metido, escondesse alguma qualidade intrínseca, ou pior, como se desdenhássemos dos humildes, dos solícitos, e daqueles que encaram a vida com bondade, fazendo pouco caso dos que nos ajudam, bajulando somente aqueles que nos desdenham. Este é, a meu ver, um dos piores defeitos humanos. Ser “mulher de malandro”.
O sucesso nos deixa bobos e insensíveis aos dramas alheios. Hoje agradeço por todas as vezes que me ferrei na vida, que não correspondi as minhas próprias expectativas ou as dos outros, e a todas as vezes que caí do cavalo. E pude perceber isso de forma muito sutil: Ao caminhar com minha mulher por uma estrada perto de casa, nos deparamos com um motoqueiro que entregava pizzas. Ele nos abordou de forma demorada, na tentativa de mostrar suas pizzas congeladas, que ele mesmo produziu. Estávamos com o corpo quente, e parar para conversar durante a caminhada, significaria o fim de nosso exercício físico e da circulação correta de nosso ácido lático. Não queria esfriar o corpo, mas como uma de minhas tentativas fracassadas de negócio no passado foi a de produzir pizzas, mesmo sabendo que não compraria pizza alguma, resolvi dar toda a atenção. Visualmente, não gostamos nenhum pouco das pizzas. A massa era industrializada. A qualidade do bacon, visivelmente rançosa, para não dizer, asquerosa. Porém, senti uma profunda empatia por aquele homem grisalho, tentado se virar em meio à crise, mesmo sabendo que provavelmente escutaria um “não”, ou um “não tenho tempo”. O que lhe faltava em qualidade de pizzaiolo, lhe sobrava em força de vontade. Um atributo que quase sempre esteve ausente em minha personalidade. Absorvi com paciência e atenção sua aula de insistência e sobrevivência, sem entrar no mérito das pizzas. E me senti orgulhoso por não ignorar aquele homem, e por não fazer o que seria esperado. Por não me comportar da maneira que meus amigos metidos se comportariam. Então nos despedimos, e continuamos a caminhada, agora com o corpo frio, mas com o coração quente. Com a certeza de que ganhar a atenção pode ser tão positivo quanto efetuar uma venda, e que o mundo seria muito melhor se fossemos mais atenciosos uns com os outros. E talvez um dia, o mendigo que pisamos na rua poderá estar muito acima de nós em um reino distante. E essa história é para os metidos, para os bajulados, para este povinho cheio de seguidores, que vomita o próprio ego e peida likes.
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