175
- Saulo Marzochi
- 13 de dez. de 2018
- 5 min de leitura
Durante muitos anos a experiência de andar de ônibus no Rio de Janeiro era desagradavelmente obrigatória para mim. Era necessário tomar dois ônibus para ir do apartamento de meus pais, onde morava, até a escola, no bairro das Laranjeiras, em 1998. Esperava primeiro o 175, ou 178, para depois esperar pelo 569 ou 584, e isto era para mim, o fim da picada, pois implicava em acordar as cinco da manhã. Lembro até hoje do som daquele despertador que a empregada, que por coincidência se chamava Assunção, trouxe do Paraguai. As linhas dos ônibus mudaram de número, como também a linha 174, que mudou logo depois do sequestro que vitimou uma passageira. A linha 175 também era emblemática, por causa do rap de Gabriel Pensador, um rap que não havia nada de especial, era o rap do 175 que ele pegou na Central.
Muitas vezes peguei o 174 achando que era o 175, não por ter problemas de visão, mas devido a falta de atenção, dislexia, ou logopedia, como explicou meu oftalmologista, que jurou que eu possuía olhos biônicos, de franco atirado ou piloto de avião. Essa falta de atenção se fez presente em todos as minhas performances em provas de vestibular ou testes, de maneira muito negativa. No quesito oftalmologico, seria uma honra nascer com lentes iguais as minhas, capazes de enxergar tão longe e tão perto. Da janela de meu quarto, no apartamento em São Conrado, morando no quarto andar, via o 178 e o 175 passar de quinze em quinze minutos. Era possível enxergar os tristes semblantes dos passageiros, que não sei se via, ou se imaginava, ou se era um pouco dos dois. Entrar em qualquer ônibus de manhã era uma experiência triste e desagradável, porque todos que estavam lá, no fundo, dividiam aquele espaço por obrigação. E quando chega o final de semana, esse mesmo povo fica ainda mais intragável obrigado a encher a cara para compensar a vida de boiada a qual é submetido. Todos estavam indo, invariavelmente, para o trabalho ou para a escola. Todos prefeririam estar ainda dormindo em suas camas, aproveitando pelo menos, mais uma ou duas horas de sono. E me indagava todas as manhãs: -Mas que tipo de bicho é o ser humano, que tem a capacidade de estragar a própria vida dessa forma? – Por que nossos dias não começam um pouquinho mais tarde, depois que o sol já raiou? Pior do que despertar no escuro para ir aonde não se quer, era ter de encarar os rostos mal humorados de todos dentro do ônibus lotado. Sempre gostei de acordar cedo, principalmente na roça, mas aquilo era demais. A umidade da madrugada fazia meu nariz escorrer. Era como ter uma overdose diária de mau-humor coletivo. Um veículo que deveria transportar bois ou galinhas, adaptado sutilmente para transportar pessoas, com a segurança de barras de aço na altura dos dentes, dirigido por motoristas-cavalos, cheios de hemorroidas, de tanto trabalharem sentados.
Eu gostava de sentar na janela para poder ver o movimento da rua em traveling e imaginar como seria a vida de cada um daqueles transeuntes. Podia ser como eu o homem de camisa listrada, ou a senhora de sacola na mão, parada. Será que também me viram? E o que interessa? Se dejaviram tantos de todos vocês? E se eu morasse dentro deles e compartilhasse seus pensamentos? Sentiria o gosto do cigarro dos que fumavam no ponto de ônibus? Em cada ponto, uma guimba de um tamanho, que representava o tempo que o ônibus demorou pra chegar, como uma ampulheta travada para sempre. E quantos bafos de cigarro sentiam por dia os trocadores, dos que chamam o coletivo apagando brasa? E me perguntava por que os trocadores cultivavam sempre uma das unhas avantajadas, descobrindo mais tarde que era para conseguir virar as moedas na mesa com facilidade, ou abrir papelotes de cocaína. As unhas eram seus instrumentos de trabalho, tal como as unhas das secretárias, feitas para manipular documentos impressos, ou as unhas dos violonistas assumidos, feitas para tocar as cordas de náilon dos violões. O problema é que sentar na janela era mais difícil de sair, e aumentava a vulnerabilidade ao ser assaltado, embora não fizesse muita diferença.
Um dia no 175, um homem meio suspeito sentou do meu lado. Era negro, pobre e desdentado. Tremia. Disse que acabara de fugir do presídio em Bangu. Conversa vai, conversa vem, disse que era um assalto. Eu abri minha carteira surrada e dei a ele todo o dinheiro que totalizava três reais, em antigas notas de um real, que nem existem mais. Até naquela época era pouco, não dava nem para o almoço. Continuamos a conversar, histórias que poderiam ser mentiras, que ele estudou no Centro Educacional da Lagoa, um colégio de classe média, mas que depois foi parar na Febem. Contei a ele sobre minhas irmãs, que também me aterrorizavam na infância com essa história de Febem. Elas tocavam a campainha dizendo que a Febem tinha chegado pra me buscar, e eu tinha que me esconder dentro do armário, no escuro e no calor, sentindo o suor escorrendo em minha testa.
Ao chegar perto do ponto final da Rocinha, o assaltante devolveu meu dinheiro, os três reais que lhe dera, e disse que eu era muito gente boa, além de me convidar para comer umas putas que ele conhecia, lá no morro. Eu agradeci, mas disse que não, não me aventuraria com ele favela adentro. Tive medo de ser sequestrado, ou contrair uma doença venérea.
Passados alguns anos, voltando da balada, peguei o 175 de madrugada em Botafogo pra voltar pra São Conrado. O motorista era um velhinho, bem magrinho, de cabelo e barba longos, e o trocador, baixinho, gordinho, de óculos. Quando o ônibus parou no penúltimo ponto na Rocinha, todos desceram e sobrou apenas eu de passageiro. Então o Motorista olhou para mim e perguntou onde eu iria ficar. – Nos prédios mais a frente, na Aquarela do Brasil. Respondi. Motorista e trocador se entreolharam e assumiram. - Estamos indo na boca de fumo comprar pó. Disse o motorista. – Não podemos deixar você aqui sozinho dentro do ônibus esperando. Ou desce aqui e vai a pé até sua casa, ou vem conosco até a boca de fumo, no Largo do Boiadeiro. Já passava das três da manhã, e resolvi ir junto com aqueles dois patifes, conhecer como funcionava a boca de fumo da Rocinha. Não tinha nada melhor pra fazer, e andar a pé por ali significaria tomar uma bela dura da PM. Então, nós três deixamos o ônibus estacionado no meio da rua e começamos a subir o morro. Atrás do ônibus, um adesivo colado no vidro, escrito: - Como estou dirigindo? E um número para contato. - Essa é boa! Pensei. Passamos por varias muvucas, motoboys do tráfico, gente indo e voltando do baile funk Emoções da Rocinha, bêbados escolhendo discos, jogando bilhar e fliperama. Lá estava eu, adolescente, com meus dois novos amigos, estendendo a night. Chegamos na boca de fumo, compartilhei um cigarro de maconha com os traficantes, enquanto o motorista e o cobrador comprovam cocaína. Um murmúrio alto preencheu meus ouvidos, acompanhado da batida que ecoava do final da rua, vindo do baile Emoções, com cheiro de esgoto, maconha, cerveja e maresia. “Quer dançar? Quer dançar? O tigrão vai te ensinar”. Dizia a música poderosa que parecia sair das entranhas do artista marginal. Então voltamos, e ao entrar no ônibus, o motorista e o trocador dividiram a droga na mesa de troco, usando uma nota de cinco para dar uma última cafungada. Reparei que o trocador também tinha unhas grandes para levantar moedas, abrir documentos impressos, papelotes de cocaína, e quem sabe até mesmo tocar violão. Então o motorista me perguntou exatamente onde eu morava, me levando de ônibus até a porta do condomínio, como se fosse meu motorista particular. - Gente boa esse motorista. Comentou o porteiro do meu prédio.
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