A maconha
- Saulo Marzochi
- 15 de dez. de 2018
- 5 min de leitura

Em meus textos a palavra maconha aparece de forma corriqueira. Alguns me perguntam: - Mas então você ainda é maconheiro? – Bom, durante vinte anos de minha vida eu fui sim! Mas hoje estou livre para desfrutar do mundo sem esta bengala. Fumei maconha três vezes por dia durante vinte longos anos. Isso dá uma média de dois quilos por ano, e ao longo de uma vida inteira, devo ter consumido cerca de trinta quilos da erva, o que daria para comprar cerca de cinco metralhadoras AR 15 no mercado negro, ou um veículo Mitsubishi Defender zero quilometro na concessionária. Seria possível terminar duas faculdades particulares com esse dinheiro, ou abrir um negócio que me permitiria comprar ainda mais maconha. Mas é claro que, numa vida inteira, tudo sai muito caro. Se for calcular tudo o que já gastei em chiclete, balas Juquinha, sorvete, cinema, cerveja, também me surpreenderei com os valores somados, e não dá para economizar em tudo. Não dá nem pra sair de casa. Aliás, o grande motivo porque fumei tanta maconha na vida é porque não queria sair muito de casa. Pensava que sem ela seria menos feliz, menos calmo, menos criativo, que não teria saco nem para ler um livro. E de fato, só comecei a me interessar por esportes, pelo exercício físico, depois de fumar maconha, pois o corpo vira uma espécie de locomotiva quando se está chapado e em movimento. Que delícia que era fumar e malhar, e fumar de novo quando acabava a malhação. Achava que se parasse se fumar maconha acabaria gastando muito mais dinheiro com cerveja, táxi, ônibus, ingressos para eventos, sei lá. O que não deixa de ser verdade.
Quando entrei para o bodyboard, o discurso dos atletas da praia era sectariamente antidrogas, mas ao final do treino, todos nós dividíamos um baseado. Mas de que drogas vocês estavam falando? Isso não é droga?! - Droga é cocaína. Afirmavam. De fato, a maconha provoca um vício psicológico e químico até certo ponto, mas quem não é capaz de lidar com sua abstinência ou com seus efeitos é porque possui outros problemas muito mais graves. Talvez seja esquizofrênico, psicótico, ou maníaco depressivo, e está tentado esconder algumas dessas doenças particulares, demonizando a droga dos outros.
Quem acha que a maconha é um trampolim para outras drogas, certamente nunca fumou. O que acontece é que quando a maconha acaba no mercado por causa das férias escolares, o traficante diz o seguinte: - Maconha acabou e agora só tem pó. E daí, quem não quer sair de mão vazias da boca de fumo compra o que tiver, correndo o risco de se viciar em outras coisas. Mas o maior risco que a maconha apresenta não são suas propriedades químicas, e sim o contato direto com a criminalidade. Muitas vezes subi o morro para não ter de fumar em casa ou na rua. Em casa, estava sujeito aos olhares de repreensão familiar. Na rua, tomava dura quase diariamente da polícia militar. A favela era um ambiente livre para o consumo da droga, porém essa falsa liberdade se revelava quando me deparava com o sistema de sharria imposto pelos traficantes. No morro, fui ameaçado de metralhadora depois de uma discussão insólita entre um amigo meu e um traficante, e vi uma cabeça azeda cortada com facão, como se fosse coisa corriqueira.
E porque não plantei em casa para poder consumir livremente sem contribuir com o tráfico? Porque a punição para quem planta em casa é maior do que a punição para o usuário que compra o produto na mão do traficante. Uma vez tentei plantar, mas o medo de ser descoberto foi tão grande que tive de desistir da empreitada, tendo de jogar tudo fora. Um conhecido meu se deu muito mal fazendo isso. O que deveria ter sido uma iniciativa louvável, a de se emancipar do tráfico e parar de contribuir com a morte de policiais e inocentes, transformou-se em um transtorno sem fim, pois foi enquadrado como traficante de drogas, e daí, provar que nariz de porco não era tomada, foram outros quinhentos. Passou vergonha sendo levado de camburão. Respondeu na justiça durante anos. Pagou advogados e até hoje esse processo ainda não acabou. Essa é a recompensa para o usuário consciente.
Mas se a maconha é uma droga tão leve, não seria fácil de parar? Se ela dá tanta complicação, por que as pessoas simplesmente não param de usar? A mesma pergunta poderia ter sido feita durante a lei seca nos Estados Unidos, mas o que aconteceu foi que ninguém parou de beber, e passaram a comprar bebidas artesanais e de má qualidade na mão dos gangsters, financiando os traficantes que corrompiam a polícia, como é mostrado no filme “os intocáveis”, com Kevin Costner. Essa é exatamente a situação que estamos vivendo desde que Getúlio Vargas fechou as casas de ópio, onde se vendiam estes tipos de produto para posteriormente empoderar os marginais.
As drogas ilícitas são proibidas porque fazem mal? Hora bolas! Se em vez de maconha, eu tivesse consumido Valium antes do dormir por vinte anos, certamente teria cometido suicídio, como consta na bula, e sabe-se lá que efeitos adversos poderiam causar essas drogas inventadas tão recentemente. Se tivesse tomado cachaça três vezes ao dia, em vinte anos, certamente já teria morrido de cirrose, e nenhuma vovozinha católica ou evangélica, ou milico reacionário, se revoltariam mediante drogas tão difundidas, com propaganda até na televisão. Sem contar com os acidentes de carro, um verdadeiro holocausto brasileiro, em que o álcool, quando não é agente, é coadjuvante.
Vivemos numa sociedade que prefere prender maconheiros rastafáris que tocam regue na praia com violão, para deixar passar caminhonetes com caixa de som estourando, tocando sertanejo universitário, dirigidas por agro-boys bêbados vindos de Goiás a 200 quilômetros por hora, brecando nos pardais. Estamos vivendo um modelo falido de sociedade e vamos então culpar os maconheiros pelas mortes dos policiais, pois são eles que financiam os traficantes? A grande maioria dos meus amigos é, ou foi, maconheira. Na minha escola, quase todo mundo fumava maconha, e na faculdade idem, assim como muitos de meus professores. Se a culpa é de todo mundo, então a culpa não é de ninguém.
Durante mais de 13 anos o PT esteve no poder e não fez nada para legalizar a maconha, e nem ao menos colocou a criminalização em cheque. Agora, aos cinco minutos de acréscimo do segundo tempo, o candidato Haddad prometeu legalizar a maconha para conquistar os votos dos maconheiros, mas logo voltou atrás, para não perder os votos dos não-maconheiros, numa completa trapalhada conceitual. O único que vi levantar essa bandeira, a da legalização da maconha, foi FHC.
Agora, pelo visto, teremos um governo ainda mais distante da descriminalização das drogas, não só por causa de seus valores, mas devido à ignorância extrema, ignorância cristalina, em seu estado mais puro quanto a este tema. Para terminar, nossa classe artística, como sempre, está atrás de uma boquinha, e por isso não quer se meter em discussões muito polêmicas. Quer peidar cheiroso e encolher a barriga pra sair bem na foto. Cadê a nossa maconheira Tropicália pra defender a legalização das drogas, ou da maconha em específico? Porque os atores globais que fumam a erva não se posicionam, se são tão legais? Tiram o corpo fora, covardemente, em todas as discussões, com medo de se queimar, pra depois falar mal do Fernando Henrique e de seu neoliberalismo. Preferem se manifestar como se fossem especialistas em índios, ou hidrelétricas. Essa é a grande hipocrisia que paira sobre a sala de estar de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Uma elite cultural milionária, que fuma a melhor maconha, o melhor haxixe, o melhor skank, mas sem nunca dar a cara a tapa, e que ainda dá lições de moral de dentro de seus palacetes.
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