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MINHA CAVEIRA
- Saulo Marzochi
- 28 de set. de 2019
- 6 min de leitura

Morri. Estava sendo enterrado. Estava morto, mas consciente. Em vez de um nada, um escuro, um vazio, podia enxergar o contexto e sentir no corpo a descida na vala. Podia sentir o peso da terra caindo sobre meu peito, jogados com certa calma e respeito. Acabou, pensei. Mas ainda posso pensar! Não há mais nada pra fazer! Nada pra responder! Nenhuma conta pra pagar, ou muito menos, o que mais me atormentava em vida: escolhas. É estranho aceitar essa situação, de que todas as oportunidades se esgotaram, de que a vida foi possivelmente curta e injusta, e isso pouco importa agora, frente ao irreversível.
Essa sensação do peso da terra sobre meu corpo não me pareceu estranha, parece ter ocorrido comigo muitas e muitas vezes. Sempre me achei o mais novo, o caçula, o ingênuo. Que em função deste retardo, a vida passaria mais devagar para mim, ou que viveria eternamente, sendo poupado por ela, café com leite, mimado pela natureza, como meus pais me mimaram. Mas a vida segue e seremos esquecidos por mais que esperneemos, nesta curta vida primata, abatido pelos anos, dias e segundos. Vivemos menos do que os tubarões, menos do que as tartarugas, para que possamos viver, amar e odiar, intensamente, como cães. A humanidade continuará com suas luzes acesas visíveis até mesmo do espaço, muito tempo depois de nós. E pode ser que tenhamos sido sorteados, privilegiados por viver no melhor momento da civilização, com seus analgésicos, seus perfumes, hidratantes, xampus, passagens aéreas, tratamentos médicos, livros, cinema, teatro, para o azar de quem só teve a oportunidade de viver na purulenta idade-média, ou no brutal neolítico.
Morri. E as primeiras a me atacar são as formigas que matei na infância, esmagadas ou queimadas com a lupa. É meu cérebro a se desligar. Parte por parte, excluindo o raciocínio, até sobrar a culpa, com a visita de todos os quais fiz algum mal. A culpa me consome, mais das coisas que não fiz. Por que não acordei mais cedo? Por que não acordei mais tarde? Por que nunca fiz teatro? Por que me preocupei tanto com coisas sem relevância?
Após o desligamento total, novamente um betume. O que me sobra é menos do que os sonhos que tive em vida, construídos com alguma ajuda do cérebro que agora a terra consome. Sobraram apenas os sonhos da alma. Enquanto o corpo se decompõe, ficando mais leve, meu cabelo e minhas unhas não param de crescer. Mas que diabos! Tinha sido tão claro ao pedir para ser cremado! Se tivesse queimado, me espalharia pelo ar de uma vez, pulando a fase putrefata, que aos poucos me dilui, para que eu mesmo tenha nojo de quem fui. Ninguém levou em consideração o que falei. Mas é claro! Ser enterrado é mais barato. E por que realizariam um pedido póstumo de alguém que em vida não teve qualquer importância? Alguns dirão que virei uma estrelinha, outros suspirarão aliviados, dizendo que finalmente descansei e parei de gerar problemas para os outros. Minha falta será dada sobretudo por aqueles que não me conheceram muito bem. E a vida seguirá a toda velocidade, até o dia em que um grande meteoro destruir tudo. Não terei ideia, assim como todos aquele que me antecederam, de como a humanidade será no futuro. Em que bizarrices acreditarão, e o quão ingênuo seremos considerados em nossa geração. Será que gargalharão de nós por acreditar em amor e ódio, bom e mau, fidelidade e infidelidade, culpa e absolvição, justiça e injustiça? Será que resolverão todas essas questões tomando um único comprimido? Será que matarão a fome bebendo insetos com canudinho biodegradavel?
Agora que sou esqueleto, uma brecha de sol me ilumina. É impressão minha, ou alguém me profana? Um maldito ensacou minha caveira e me vendeu para um desses góticos de Belford Roxo. Ele me apoiou em sua escrivaninha como um troféu, depois de me lavar com removedor faísca. Agora vejo este maldito jovem gótico a cada instante, que de certa forma lembra minha juventude, suportando essa música de havymetal. Por que cultua tanto a morte? Será que está ansioso para conhecê-la? Agora que fui profanado, hei de me vingar, a começar por este energúmeno. Há de morrer de curiosidade, tal como os gatos!
Mas que poder eu teria para fazer algum mal, se estou aqui imóvel, servindo de souvenir? O rapaz então me empunhou e declamou: - Ser ou não ser?! Eis a questão! A única passagem que sabia de Shakespeare. Que clichê! Mas foi para isso que fui profanado? Eu que tinha ate passaporte italiano para sair daqui, acabei morrendo em Belford Roxo... Mas pensando bem, talvez possa influenciar-lhe as ideias, quem sabe, um mau conselho.
Assim que o jovem dormiu, abduzi sua a mente. Provoquei um tremendo mal estar. Agora, em seu pesadelo, estava preso dentro de minha mente, uma caveira, que mais parecia uma gruta escura vista por dentro. - Sinta como é estar dentro de minha consciência! Sinta como é insuportável! Sinta o que é o arrependimento profundo, a culpa, a escuridão! Você que pensa que sua vida é ruim e deseja estragar tudo, sinta como é morar dentro de mim!
Com seu próprio grito, acordou. Minha caveira o observava da escrivaninha: eu, e o busto do Darth Vader. Ingênuo, aquele que acha que pode dormir com o crânio alheio e sair ileso. Eu que a vida inteira fui assombrado, agora podia assombrar alguém. Esperava o rapaz dormir, para que minha voz ecoasse livremente em seu sono. Mas conforme o tempo passava, meu desejo de fazê-lo mal perdia sentido. Ele mesmo, obsecado por sua aparência, mal sabia, mas cavava sua própria sepultura ao olhar tantas vezes para o espelho. Tornar-se-ia vitima do mesmo defeito que me arruinara. Mergulhava no espelho dentro de sua própria pupila, em busca, talvez, de respostas. Desejava compreender-se, mas ao contrario, confundia-se na imensidão de si, não se encontrando em lugar algum. Não era necessária minha ajuda para que seguisse o caminho da autodestruição, os mesmos que segui, e por alguma razão ou coincidência, estou aqui a notá-lo, ever escancarados meus próprios defeitos nos outros. Defeitos estes que não sabia, mas são muito comuns. Que não fui o único desgraçado, e que como tantos, outros desgraçados se desgraçam e se desgraçarão.
No abismo negro de seus próprios olhos, perdeu-se na neblina, ficando cada vez mais confuso, a cada vez que olhava no espelho de seu quarto, perdido dentro daquela imagem, que não era mais ele mesmo, mas sim, um estranho. Dessa forma, o jovem outrou-se. Não encontrava mais sua imagem refletida, aquilo não era mais o seu reflexo. Era um desconhecido, de vida própria, que moraria no mundo dos espelhos, numa dimensão oposta e simétrica a nossa, que nos dividia e duplicava, tornando-nos meros espectadores de nós mesmos. Tentei projetar uma ideia em sua mente a fim de salvá-lo: - Não olhe novamente para o espelho! Gritei. Mas a essa altura já era tarde, pois o reflexo do jovem já adquirira certa autonomia. Era a esquerda de sua direita, alguém que nunca lhe daria as costas.
- Cuidado, meu amigo! Projetei. - Este reflexo lhe acompanhará a vida inteira, observando-lhe e estudando as suas fraquezas, assistindo ansioso a sua decadência. Este espectro refletido é um falso amigo, e um péssimo observador. Ele irá lhe dissuadir, como se não existisse mais nada no mundo além de vocês. E como ele não pode sair do mundo dos espelhos, tentará prendê-lo aí com ele, para que lhe faça companhia. Acontece com os vaidosos insuportáveis, com os que não prestam atenção nos outros, e que nem mesmo o piso os suportam.
O rapaz então arremessou minha caveira contra o espelho. Antes de atingi-lo, por um instante, que passou como eternidade, fitei minhas próprias cavidades orbitais refletidas, onde antes costumava ver meus olhos. - Veja no que me transformei! Nesta simples caveira mergulhei e me perdi. Ao ser arremessado contra o espelho, atravessei para o outro lado, entrando para um mundo prismático, morada de tudo aquilo que já foi refletido.
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